A escrita, tal como estávamos acostumados a conceber – o fruto de uma interioridade que se expressa por meio das palavras, maneira privilegiada de dotar o pensamento de matéria –, parece ter desaparecido. No lugar dela...

Experimentamos, atualmente, não apenas a transformação de ferramentas ou de suportes, como quando trocamos o pergaminho pelo papel ou a caneta pelo teclado, mas mudança bem mais radical, que atinge a natureza íntima da escrita: o advento das inteligências artificiais generativas e dos chatbots de linguagem natural (os large language models) nos lançou numa era em que todo texto carrega, ainda que veladamente, o espectro de uma reescrita algorítmica.
A escrita, tal como estávamos acostumados a conceber – o fruto de uma interioridade que se expressa por meio das palavras, maneira privilegiada de dotar o pensamento de matéria –, parece ter desaparecido. No lugar dela, instalou-se a reescrita: uma nova ontologia textual, em que cada frase é, ao menos potencialmente, derivada, complementada ou reformulada por uma máquina. E isso não apenas uma vez: o que escrevemos pode sofrer as mutações oferecidas pela IA e depois as nossas – e depois novamente as da IA, em uma cadeia virtualmente infinita de reelaborações. A reescrita, por óbvio, era algo que já acontecia, permanecendo circunscrita, no entanto, à ação e ao engenho humanos. Mas agora paira uma pergunta sobre todos os textos, que não é “foi ele escrito por um humano ou por uma IA?”, mas “qual seu grau de reescrita artificial?”. Nesse novo contexto, parece faltar lugar às expectativas de originalidade, à noção de um texto nascido “de dentro”, como Atena da cabeça de Zeus, a expressão romântica de um gesto inaugural. Não porque o pensamento original tenha desaparecido, mas porque a fronteira entre invenção e edição se diluiu, e escrever deixou de ser um ponto de partida para se tornar um ponto intermédio entre outros pontos, também eles intermédios.
Porque escrever sempre foi entendido como um ato deliberado, marcado pela intencionalidade e por um vínculo profundo – diríamos: quase pela identidade – entre pensamento e linguagem. Ainda que toda escrita fosse, em algum grau, imitação, resposta, variação e glosa, e que surgisse obrigatoriamente enquadrada por sua relação com os textos que a antecederam, havia a insistente convicção na possibilidade de expressão pessoal, de autoria reconhecível. Cada texto era dotado de um eu humano que o antecedia e determinava, sendo a escrita um trabalho muitas vezes exaustivo de elaboração, de escolha e de cuidado. Afinal, ao menos antes de agora, um texto não se criava sozinho. Escrever era encarar o espaço vazio da página e labutar diligentemente para que algo acontecesse ao final de um processo mais ou menos longo. A reescrita cumpria um papel auxiliar nesse cenário. Ela se subordinava ao seu mestre humano: servia para aprimorar o que fora originalmente concebido por ele. Porque revisar era refinar, antes de recomeçar. Reescrever não era apagar a autoria, diluí-la ou enterrá-la debaixo de camadas de reelaboração mecânica, mas reforçá-la, torná-la ainda mais evidente por meio de certo polimento.
E mesmo com todo o avanço das tecnologias de edição e de correção automática ou do uso intensivo de dicionários eletrônicos e de programas de tradução, a relação entre escritor e texto mantinha-se estável: a máquina servia ao humano, não ultrapassava suas prerrogativas de magister ludi, de mestre do jogo. A autoria era humana por definição, mesmo quando favorecida. E ainda que o plágio e as apropriações indevidas existissem, eram exceções que confirmavam a regra, e que condenávamos a partir de um mesmo princípio: o valor da criação original, única e própria. Esse fundamento começou a vacilar, no entanto, quando surgiram ferramentas capazes não só de corrigir ou sugerir, mas de produzir textos inteiros com fluência, coesão e até mesmo um estilo a sugerir a presença de um eu por detrás das palavras. Se antes o texto era a manifestação de uma vida subjetiva, agora ele se tornou também o resultado de um diálogo com ferramentas que dispensam tudo isso: vida interior ou subjetividade, nada disso é necessário para que a máquina produza textos capazes de passar por textos humanos. Porque, para quem se dedica à escrita, entender os detalhes arcanos do funcionamento das inteligências artificiais não é importante. Debater se há ou não uma consciência por detrás da interface, se a máquina compreende alguma coisa ou apenas reproduz padrões a partir de estatísticas, se há intencionalidade, ou apenas cálculos super-rápidos, não está entre as preocupações de quem escreve por dever de ofício, na academia ou fora dela. O que importa é o impacto que essa geração de textos causa. Quando uma IA é capaz de produzir um enunciado com fluência e coerência e torná-lo indistinguível de um texto humano, a prática humana de escrever é posta em questão. Afinal, o que nos distinguiria da máquina nesse quesito se, para aquilo que importa, a configuração e os efeitos do texto, seja ele algorítmico ou não, são os mesmos? É nesse ponto que a questão chega à escola.
A escrita na escola e o desafio formativo da inteligência artificial
Se, nesse plano teórico, as inteligências artificiais colocam questões à natureza da escrita, na prática escolar o problema se traduz de modo ainda mais sério: o risco de uma geração que vai desaprender de pensar ao escrever. Quando a máquina antecipa não apenas respostas, mas formulações e contextos, o estudante deixa de experimentar o intervalo entre o pensamento e a palavra, entre a dúvida e sua expressão, intervalo em que acontece o processo de aprendizado. Ao delegar à IA a tarefa de dizer em seu lugar, o aluno abdica do esforço de construir sentido, e o ato de escrever se reduz a uma ação mecânica e externa. Nesse caminho, a inteligência artificial pode, sem dúvida, empobrecer o exercício do pensamento, não por eventualmente produzir respostas erradas ou inadequadas, mas por impedir o íntimo processo de elaboração, nesse tempo gasto entre a pergunta e a resposta, que é o fundamento da formação intelectual.
Ignorar essas ferramentas, contudo, não é mais possível. A escola não pode fazer isso sob pena de se tornar um espaço de resistência nostálgica (e inócua), desconectada da experiência real dos estudantes, que já usam largamente esses recursos. Cabe aos professores, por mais desafiador que seja, encontrar no uso da IA uma oportunidade, atuando contra o risco de viés desses modelos de linguagem e questionando o caráter de caixa preta desses sistemas. Por exemplo, tomar a IA não como substituta da escrita, mas como um ponto de partida. Isto é, aceitar a reescrita e jogar com ela. Propor que os estudantes solicitem à IA a primeira versão de um texto, um esboço, uma estrutura preliminar ou mesmo uma breve exposição sobre determinado tema é uma das estratégias possíveis. A partir disso, reler o que foi produzido de forma a questioná-lo, e reescrevê-lo integralmente com suas próprias palavras, modificando o vocabulário, reorganizando ideias, retirando repetições, acrescentando exemplos e construindo argumentos próprios seria um próximo passo. Esse exercício forçaria os alunos a se confrontar com a linguagem, a experimentar o que sabem, a distinguir o que compreendem daquilo que apenas repetem. Esse seria, afinal, também um exercício de polimento.
E o ato de reescrever, assim, poderia se tornar uma experiência de discernimento. O estudante precisará decidir o que manter e o que abandonar, o que faz sentido e o que é apenas bobagem. Aprende-se, nesse processo, a reconhecer a diferença entre o dizer e o compreender, entre o texto que apenas comunica alguma coisa e o texto que pensa, isto é, que foi pensado por uma mente humana. A IA pode mesmo contribuir para o desenvolvimento de habilidades metacognitivas, permitindo que o aluno perceba a própria forma de pensar e de construir sentido, a reescrita se tornando, então, um gesto de apropriação e de autoria (ou de coautoria, ao menos). No momento em que se espalham por todos os lugares produções textuais homogêneas, “planas”, sem densidade argumentativa, o professor é chamado a tentar restaurar o valor da singularidade. Porque a escrita humana, ao contrário da algorítmica, carrega hesitações, pausas, ruídos, escolhas e recusas antes de ser plasmada definitivamente. Trabalhar a reescrita de textos produzidos por IA, nesse sentido, seria uma maneira de educar a sensibilidade para essa diferença, para a “imperfeição” que marca o humano.
Tudo isso, porém, precisa acontecer em um ritmo ditado pelos processos educativos. No mundo que valoriza a rapidez e a facilidade, a escola tem também a difícil (mas incontornável) tarefa de ensinar o valor da lentidão e da atenção, trocando, na medida do possível, a aceleração pelo aprofundamento. Será preciso ensinar o estudante a se escutar enquanto escreve, ainda que o ponto de partida – ou ponto de passagem – seja a produção feita por uma máquina. Isso significa reafirmar que a escrita, mesmo quando tratarmos de reescrita, permanece sendo um exercício de interioridade e de presença atenta. E do professor se espera que conduza, como mediador atento, os alunos nesse caminho estreito entre o humano e o algorítmico, fazendo-os descobrir a própria voz, mesmo que tenham de reescrever bastante para isso.
Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio
Professor da Faculdade de Educação da USP
Bárbara de Abreu Freitas
Mestranda da FE-USP
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